João Goulão, chefe das agências portuguesa e europeia de combate às drogas, foi a São Paulo na semana passada divulgar o World Bike Tour. Para o português de 56 anos, seu trabalho pode ser tão amplo que chega à promoção de um passeio ciclístico. A ideia de que o esporte pode ajudar a manter as pessoas longe do vício levou à cidade da Cracolândia o responsável pelo plano antidrogas mais elogiado do mundo.
Em 2001, Portugal descriminalizou o consumo de drogas e criou uma rede de assistência aos viciados que inclui incentivos fiscais para empresas que queiram contratá-los. Com iniciativas ousadas, o país acabou com suas cracolândias e passou a registrar os menores índices de consumo de drogas entre os jovens na Europa.
ÉPOCA – O consumo de drogas em São Paulo é tão grave que há 15 anos uma área no centro da cidade é conhecida pelo nome de Cracolândia. Nunca trouxeram o senhor para visitá-la antes?
João Goulão – Não, agora vou aproveitar a vinda para o passeio ciclístico para conhecer. Estive no Rio de Janeiro em novembro. Vi como as forças de segurança tomaram um espaço e, em seguida, resumiram-se a dar apoio aos serviços sociais, sem uma postura agressiva. Parece a atitude adequada.
ÉPOCA – Lisboa teve um local de consumo como São Paulo?
Goulão – Teve. Ficava no Casal Ventoso, um bairro litorâneo habitado por trabalhadores portuários. Quando Portugal perdeu suas colônias, na década de 1970, a atividade naval decaiu e houve muito desemprego naquele bairro. Aquelas pessoas conheciam marinheiros e passaram a se dedicar ao contrabando, primeiro de produtos de consumo e depois de drogas. O bairro de gente pobre foi colonizado por bandidos e tornou-se o maior supermercado de drogas da Europa, visitado diariamente por mais de 5 mil pessoas.
ÉPOCA – No início de janeiro, a Polícia Militar de São Paulo entrou na Cracolândia sem agentes sociais, com armas e balas de borracha. Como foi o combate às drogas no Casal Ventoso?
Goulão – Nossa abordagem foi de assistência social. A polícia entrou para acompanhar os assistentes. Começamos com uma política de troca de seringas usadas por novas, o que foi importantíssimo para controlar o crescimento dos casos de aids ligados a drogas injetáveis. Depois de cinco anos de trabalho, ganhamos a confiança dos viciados e conseguimos aproximá-los dos serviços de saúde. Penso que não teria sido possível se tivesse havido a entrada de forças policiais e o envio para tratamento quase compulsório.
ÉPOCA – O governo federal anunciou o destino de verbas para clínicas de internação compulsória, e o Rio de Janeiro adotou esse procedimento há poucos meses. É uma iniciativa necessária para tratar pessoas em estágio avançado de vício?
Goulão – Não acredito no sucesso da internação compulsória. O viciado vai à força para um lugar fora da realidade, fisicamente impedido de consumir drogas. Como ele vai se comportar ao sair? Para deixar o vício, a pessoa precisa reformatar seus hábitos. Não é só retirar uma substância, é mudar o estilo de vida. A internação voluntária é um processo demorado, mas considero mais eficaz.
ÉPOCA – Como esperar força de vontade de alguém que, por causa do vício, perdeu qualquer tipo de motivação?
Goulão – De fato, estamos lidando com seres que se encontram numa condição quase animalesca. É preciso resgatar a dignidade, noções de higiene, o orgulho por pequenas coisas. Só depois disso, motivar a internação voluntária. É difícil, mas entendo que assim funciona a intervenção.
ÉPOCA – Áreas dominadas por viciados despertam repulsa na sociedade. Como política de tratamento, é melhor dispersar os viciados pela cidade ou aproveitar a reunião deles?
Goulão – Quando tivemos nossa cracolândia, nós não a dispersamos. Cinco anos depois de entrar com o serviço médico e social, quando o Casal Ventoso já não era um polo de consumo, fizemos uma operação de reurbanização com remoção de casas e mudança dos moradores.
ÉPOCA – O crack é uma droga diferente das outras?
Goulão – O crack tem um poder viciante fortíssimo, e não há uma substância química que o substitua num tratamento terapêutico. A abordagem é mais complexa e demorada que a da heroína, principal droga em Portugal. O trabalho de educação, redução de danos e tratamento é mais difícil.
ÉPOCA – Como são as campanhas antidrogas de Portugal?
Goulão – Desistimos de fazer propagandas na televisão com mensagens para o grande público. Elas custavam caro e traziam pouco resultado. Hoje, mapeamos grupos, como jovens que deixaram a escola e filhos de viciados. São trabalhos dirigidos, feitos nos lugares onde está o público potencial.
ÉPOCA – Como o departamento antidrogas aborda os viciados?
Goulão – Os órgãos de saúde e assistência social precisam conhecer de perto que tipo de crack está nas ruas. Saber inclusive quanto as drogas à venda estão adulteradas, para então difundir, entre os usuários, a partir de qual dose consumida há risco de morte
ÉPOCA – Os órgãos de saúde devem orientar os usuários sobre quanta droga eles podem consumir?
Goulão – Exatamente. A mensagem deve ser: “Não consuma drogas, mas, se consumir, tome certos cuidados”. Não consuma sozinho, porque, se houver um pequeno acidente, ninguém vai poder ajudar. Passamos mensagens que ajudam a pessoa a correr menos riscos.
ÉPOCA – Orientar o consumo de drogas não é uma postura que beira o incentivo?
Goulão – Em primeiro lugar, nosso objetivo é salvar vidas. Em segundo lugar, ganhar a confiança das pessoas para orientá-las a deixar o vício. Ainda estamos muito formatados à ideia de que consumir drogas é pecado. Não conseguimos encarar o dependente de drogas como fazemos com um diabético, que é dependente de insulina. Só faremos progressos significativos quando abandonarmos essa carga ideológica.
ÉPOCA – Como Portugal encara os viciados?
Goulão – Encaramos o dependente como fazemos com um diabético. Damos a ele oportunidade de tratamento sem custo, com privacidade e sem condenação. Na lei que adotamos há dez anos, consumir drogas não é mais crime. É como dirigir sem cinto de segurança: o infrator não vai para a cadeia, não é fichado por isso.
ÉPOCA – Como uma sociedade conservadora como a portuguesa aceitou descriminalizar o consumo de drogas?
Goulão – A explicação está na própria origem do consumo em Portugal. O uso de drogas fez parte da explosão de liberdade que o país viveu com o fim da ditadura, em 1974. Começou com maconha, e um dia o vendedor de maconha ofereceu cocaína, heroína… De repente os viciados já representavam 1% da população, todo mundo tinha algum na família. Então foi fácil para a sociedade perceber que o dependente era uma pessoa honesta precisando de ajuda. E, ao ser mandada para a cadeia, a pessoa sairia pior do que entrou. A descriminalização das drogas foi uma decisão tomada de baixo para cima, e não determinada pelos políticos.
ÉPOCA – A ausência de punição não incentiva mais pessoas a experimentar drogas?
Goulão – Isso não tem acontecido. Desde a descriminalização, a experimentação de drogas entre os mais jovens caiu. Não sei dizer por quê. Talvez porque os jovens de uma forma geral gostem de desafiar a autoridade e, hoje, consumir drogas é menos desafiante. Em compensação, temos mais jovens se embebedando. Se o apelo da droga não está mais no desafio à lei, a bebida alcoólica é mais barata e disponível.
ÉPOCA – Um problema entre os viciados é voltar à vida social. Quais são as soluções de Portugal?
Goulão – O governo abriu linhas de crédito para pequenas empresas abertas por toxicodependentes, assim como incentivos fiscais a empresas que contratem essas pessoas.
ÉPOCA – Num momento de crise econômica na Europa, favorecer o emprego de viciados parece uma questão polêmica.
Goulão – É sim. Algumas pessoas dizem: “Será que tenho de usar drogas para conseguir trabalho?”. Isso aumenta o estigma dos dependentes. É muito complicado lutar por um programa de discriminação positiva. Ultimamente, tenho ficado bem quieto, sem pedir nada. Apenas peço que não cortem muito o orçamento do departamento antidrogas português, para não perdermos as conquistas atuais.
ÉPOCA – Quanto o departamento antidrogas gasta por ano?
Goulão – O orçamento anual do instituto é de € 75 milhões, 80% deles dedicados a tratamento. De maneiras mais ou menos intensivas, ele atende 45 mil pessoas.
ÉPOCA – Quanto Portugal economiza ao devolver viciados em drogas à vida produtiva?
Goulão – Trabalhos acadêmicos estimam que cada euro investido na recuperação de viciados leva à economia de e 20. Esse valor inclui a produtividade da pessoa e a economia por não ter de tratar doenças relacionadas ao vício, como a aids.
ÉPOCA – O senhor considera o modelo português replicável em países maiores, como o Brasil e os Estados Unidos?
Goulão – Acredito que alguns aspectos sejam válidos em qualquer realidade. Mesmo com uma linha de criminalização do consumo, penso que um olhar mais próximo das pessoas é válido. Em Portugal, combatemos o vício, não o viciado.
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