Às vésperas das festas de fim de ano, o governo federal rompe a parceria com a organização que abalou os alicerces da indústria da seca ao implantar mais de 370 mil cisternas de alvenaria no sertão nordestino. E começa a distribuir cisternas de plástico
ELIANE BRUM
Parte do Brasil conhece o sertão nordestino pela literatura, com clássicos como “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, e “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Também conheceu o semiárido pela imprensa, nas constantes denúncias de corrupção e desvio de verbas públicas em obras q ue deveriam combater a seca, mas estagnavam nas mãos privadas de coronéis. Nos últimos anos, porém, a paisagem do sertão estava mudando, graças a um movimento iniciado em 2003. No primeiro ano do governo Lula, a ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro), uma rede que reúne centenas de organizações não governamentais, procurou o presidente para propor uma parceria para a construção de cisternas de alvenaria no sertão nordestino. Seus interlocutores eram Frei Betto e Oded Grajew, então no governo. Assinalado pela sua origem de retirante, de menino pobre do semiárido que migrou com a mãe e os irmãos de Caetés, em Pernambuco, para São Paulo, Lula acolheu a ideia. Ele conhecia bem a aridez geográfica e a imutabilidade dos desmandos políticos que faziam da sua terra um lugar brutal. O resultado deste esforço entre governo federal e sociedade civil organizada foram 371 mil cisternas de cimento, envolvendo 12 mil pedreiros e pedreiras das comunidades e benef iciando mais de 2 milhões de brasileiros em 1.076 municípios. Algo grande, muito grande, para quem acompanha a história do Nordeste brasileiro. Basta andar pelo semiárido para ver que, quando há vontade política, é possível fazer milagres de gente. A presença da água, com a implantação coletiva de uma simples cisterna, tem mudado não apenas a economia, mas a autoestima do povo que vê florescer a vida e também a possibilidade de reescrever sua história – desta vez como autor, e não mais como personagem.
Tudo ia muito bem até este mês de dezembro, quando a coordenação da ASA foi informada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) que suspenderia o pagamento dos recursos para o “Programa Um Milhão de Cisternas”. O governo anunciou que pretendia mudar os arranjos para o Plano Brasil Sem Miséria e ampliaria os convênios com os estados – sinalizando o afastamento das organizações não governamentais do processo. A ASA foi aconselhada a negociar com os estados e municípios.
O que isso significa? Muito.
A ASA fará uma manifestação em Petrolina (PE) na manhã desta terça-feira, 20/12, para protestar contra a ameaça ao Programa Um Milhão de Cisternas e para denunciar que a soc iedade civil organizada está sendo excluída do governo de Dilma Rousseff.
Milhares de sertanejos partirão de diferentes estados nordestinos para se reunir em Petrolina e alertar o país para uma possível volta às velhas práticas do passado, quando a indústria da seca era a única coisa que vicejava no semiárido brasileiro e qualquer arremedo de solução era usado como moeda eleitoral.
O rompimento da parceria com a ASA é anunciado no momento em que a opinião pública está predisposta a considerar qualquer ONG fraudulenta. Como foram denunciados muitos “malfeitos” nos convênios entre algumas organizações não governamentais e ministros demitidos, como Orlando Silva e Carlos Lupi, não há melhor hora para romper com a sociedade civil organizada. E fazer parecer que as ações são um esforço de moralização dos recursos públicos. Esquece-se – talvez por conveniência – que o surgimento das ONGs é resultado direto da redemocratização do país. E também que uma parcela significativa delas não apenas é honesta, como tem operado uma grande transformação nas relações e nos resultados em várias áreas cruciais.
A sociedade civil organizada tem – e para parte dos políticos é aí que mora o incômodo – impedido que as verbas públicas sejam interceptadas e manipuladas por grupos instalados em setores estratégicos. E assim, impedido governos, em todos os níveis, de agradar aliados com a possibilidade de administrar uma parcela polpuda das verbas públicas. É claro que há ONGs corruptas, que se aliaram a políticos corruptos, para l ucrar com o dinheiro do povo. Mas demonizar todas elas é uma esperteza de quem está doido para voltar ao modelo antigo – e é também má fé e desrespeito com o avanço conquistado pela sociedade brasileira nas últimas décadas.
Em novembro, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretar ia-Geral da Presidência da República, afirmou que o governo separaria “o joio do trigo”. Disse mais: “As organizações sérias não têm nada a temer”. Pesquisei, então, em que lugar se situa a ASA na paisagem da sociedade civil organizada. Descobri que, na opinião do governo federal, a ASA é “trigo” da melhor qualidade.
Pela seriedade e competência da sua atuação, a rede já recebeu uma dezena de prêmios. Entre eles, o Prêmio de Direitos Humanos do governo federal, na categoria “Enfrentamento da Pobreza”, entregue pelo próprio Lula no final de 2010. E também um prêmio da ONU, que a considerou “uma referência de gestão e inclusão social no campo do acesso à água e do direito à segurança alimentar e nutricional das famílias carentes do semiárido”. Em entrevista à TV Brasil, em novembro, Luiz Navarro, secretário-executivo da Controladoria Geral da União (CGU), disse que algumas organizações não governamenta is apresentavam mais condições de realizar determinadas ações do que o Estado. Entre os exemplos, afirmou que haviam acabado de avaliar o Programa Um milhão de cisternas, da ASA: “Nossa avaliação é extremamente positiva. Não sei se o Estado teria o mesmo dinamismo para fazer o que essas ONGs têm feito”.
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